quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Além do meme: Sai a Turquia, entra o Peru

   Além de atestar a péssima fase que vive o jornalismo nacional, o meme feito a partir de um infográfico do Estadão relacionado às migrações de africanos e refugiados, em matéria de 15 de setembro deste ano, também serve como ponto de partida para entender o porquê de o nome do país que chamamos Turquia e da ave que denominados peru serem referidos pela mesma palavra na Língua Inglesa, diferenciados apenas pelo tamanho da consoante inicial: Turkey e turkey.



Onde consta "Peru" (canto inferior direito) deveria constar "Turkey".

Dos tu-kin aos turcos

   Então, lá pelo ano 177 a.C., os chineses designaram como tu-kin um povo que habitava ao sul das Montanhas Altaicas e que é identificado por alguns como o povo huno (o mesmo que teria forçado os povos germânicos a abandonarem suas terras e migrar para dentro das fronteiras do Império Romano). Esse povo tu-kin poderia ser o povo turco ou estar na origem do mesmo, que não é originário da região onde hoje se encontra a Turquia, mas sim de terras mais orientais, na Ásia Central.
   E é na Ásia onde a esmagadora maioria dos povos turcos está confinada, sendo eles histórica e linguisticamente relacionados ao povo nômade que, no século VI, montou um império na região que vai da atual Mongólia e fronteira norte da China ao Mar Negro, sendo esse povo designado tujue pelos chineses.



Distribuição dos povos turcos ou turcomanos.

   Aliás, o termo que é utilizado como nome étnico não abrange somente o povo da Turquia, mas também pode ser utilizado para se referir a qualquer população turcomana, seja ocidental ou oriental, a saber: Usbeque (Inglês: Uzbek), Cazaque (Inglês: Kazakh), Quirguize (Inglês: Kyrgyz), Turcomeno (Inglês: Turkmen), Azerbaidjano ou Azeri (Inglês: Azerbaijani), Caracalpaque (Inglês: Karakalpak), Tártaros (Inglês: Tatars), Basquir (Inglês: Bashkir), Carachai (Inglês: Karachay), Balcar (Inglês: Balkar), Tshuvache (Inglês: Chuvash) e Uigur (Inglês: Uighur).
   Além da correspondência étnica, na Língua Turca, o termo turk (que pode ser comparado com o Chinês tu-kin) significa "força", enquanto que em Persa também pode significar "um bárbaro", "um ladrão" ou "um(a) lindo(a) jovem". E teria sido do Persa que se originou o Grego Bizantino Tourkos, de onde veio o Latim Medieval Turcus, o qual deu no Francês Turc, chegando no Inglês por volta de 1300.
   Em Inglês [1], usou-se The Grand Turk para se referir ao sultão otomano, em fins do século XV, enquanto the Turk foi usado coletivamente para o povo turco ou para o poder otomano. Já o uso com o significado "muçulmano" remete ao século XIV e mais especificamente no período que vai do século XVI ao XVIII, refletindo o entendimento ocidental do status do poder político turco como uma nação muçulmana por excelência. Consequentemente, Turkery foi utilizado como sinônimo de "islã" (registro por volta de 1580) e turn Turk significava o mesmo que "converter-se ao islã, virar muçulmano".





   Além desses usos, ocorre também em Young Turk, Turkish bath e Turkish delight. O primeiro era o nome dado (registro de 1908) aos membros de um grupo político do começo do século XX, o qual buscou o rejuvenescimento da nação turca. O segundo é atestado desde os anos 1640 e equivale ao nosso "banho turco", enquanto o terceiro é de 1877 e corresponde aos nossos "delícia turca", "manjar turco" e "bala de goma".



Onde entre o peru nessa história...

   Agora falemos do Peru, ou melhor, do peru [2]. O erro de tradução ocorrido tem por base o fato de o nome da Turquia em Inglês, Turkey, diferir-se do palavra inglesa para "peru", turkey, apenas pela consoante inicial maiúscula. Para entender o porquê disso, voltemos lá pelos anos de 1540, onde, originalmente, o termo turkey era sinônimo de guinea fowl, isto é, galinha d'Angola (Numida meleagris), ave importada de Madagascar através da Turquia e que foi chamada galinha d'Angola quando trazida por comerciantes portugueses da África Ocidental.



Aparentemente, isto é uma Numida meleagris sabyi, uma subespécie de galinha d'angola.

   O pássaro maior e cientificamente denominado Meleagris gallopavo é oriundo da América do Norte e foi domesticado pelos astecas, sendo levado para a Espanha pelos conquistadores (1523) e difundida por toda a Europa. Essa ave maior foi batizada em Inglês como turkey por volta de 1550 por ter sido identificada como ou tratada como uma espécie de galinha d'Angola e/ou porque ela chegou ao resto da Europa através da Espanha por meio do norte da África, então sob controle turco-otomano [3].



Eis um Meleagris gallopavo ou Peru. Não, 'pera...

   Uma natural pergunta-composta que surge é: Que nome os turcos e os peruanos dão para a ave chamada peru? Bem, os turcos a denominam hindi (que, literalmente, significa "indiano"), provavelmente influenciados pelo Francês Médio dinde (cerca de 1600, contração de poulet d'inde, literalmente "frango da Índia", Francês Moderno dindon [4]), baseado no então comum equívoco de que o Novo Mundo era o leste asiático.



Agora eu acertei de peru! Não, 'pera, acho que essa frase não ficou boa...

   Os peruano, por sua vez, a denominam da mesma forma que os espanhóis, isto é, pavo, termo outrora designativo do pavão, que passou a ser chamado pavo real (pavão verdadeiro), e que tem a mesma origem do nosso "pavão", isto é, do Latim pavo, pavonis (pavão). Outra palavra do mundo hispanófono, a qual não consegui identificar se é de uso generalizado ou restrito ao México (de onde é oriunda), Honduras e El Salvador, é guajolote, termo de origem na Língua Náuatle, derivando de huey, hueyi (grande, velho) e y xólotl (monstro), isto é, "monstro grande".
   Agora, a explicação usualmente aceita para o porquê de nós, lusófonos, denominarmos a ave em questão como Peru diz respeito ao antigo Vice-Reino do Peru, unidade administrativa do Império Espanhol que correspondia a praticamente toda a América do Sul sob seu domínio (i.é: quase toda a costa oeste sul-americana). O nome dessa unidade administrativa teria sido dado pelos conquistadores porque os mesmos teriam ouvido os nativos dizerem o termo pelu (Quíchua para "rio"), entendendo-o como o nome da região.



Mapa mostrando os vice-reinos espanhóis.

   Entretanto, os portugueses comumente não faziam essa distinção entre o Vice-Reino do Peru e o Vice-Reino da Nova Espanha (América Central, México e sul dos EUA), designando toda a América Espanhola como Peru, de modo que, quando a ave e os colonizadores portugueses se encontraram, estes últimos teriam denominado-a "ave do Peru" (i.é: ave oriunda da América Espanhola) ou apenas "Peru".
   Quanto ao Inglês, Harper diz que as aves foram distinguidas e diferenciadas, mas que, no lugar de a ave africana ser batizada como turkey, este nome acabou sendo dado para a ave americana (a outra sendo denominada guinea fowl) e que, não bastasse isso, Linnæus acabou adotando o antigo nome da ave africana como nome genérico da ave americana.
   Ele também diz que o wild turkey (peru selvagem), uma forma da ave norte americana, foi chamado por volta de 1610 e nos informa outros quatro usos do termo, a saber: talk turkey, de 1824, supostamente vem um antigo conto onde um ianque tenta enganar um indiano na divisão de um peru e um urubu como alimento; Turkey shoot (algo fácil) vem do período da II Guerra Mundial, em referência aos concursos de boa pontaria em que perus eram amarrados atrás de registros com as cabeças exibidas como alvos; turkey como sinônimo de "espetáculo inferior, fracasso" é de 1927, em gíria do show business, provavelmente por causa da reputação de estúpido que o peru possui, mas a utilização de turkey com o sentido de "estúpido" ou "pessoa ineficaz" só é registrado a partir de 1951.
   É interessante notar que a palavra "peru" chega a comportar esse significado de "estúpido", "bobo", "besta", "ludibriável", "ingênuo", "idiota", muito embora o Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa não registre essa acepção, mas contenha o verbo "peruar", com os sentidos de "observar (um jogo) dando palpites; observar com indiscrição, bisbilhotar; e, demonstrar interesse amoroso (por), paquerar". Por extensão, teríamos e temos "peru" também com o sentido de "bisbilhoteiro, xereta, intrometido" e "paquerador", apesar de que, mais uma vez, o mesmo dicionário não traga isso [5].
   Por fim, e retomando a questão da estupidez e ingenuidade, a ocorrência que encontrei na internet (por enquanto) diz respeito às expressões nordestinas "peru em mei de caiga" (peru em meio de carga) e "peru novo", muito embora eu também me recorde do uso de "peru" e "peruzinho" como nome alternativo para a brincadeira mais conhecida como "bobinho", muito usada em aquecimentos de esportes coletivo (como o futebol e o handebol) e que basicamente consiste de um "peru" ou "bobinho" no centro de um roda, tentando pegar a bola que os demais participantes jogam de um para o outro.


Aqui, o bobinho infantil






NOTAS

[1] Outro significado para Turk é "pessoa de ascendência irlandesa" (tipo eu, longinquamente - ou nem tanto - pela linha paterna "Callins"), cujo primeiro registro data de 1914, nos EUA, aparentemente tendo se originado entre os eiro-americanos (o termo original é irish-americans, mas não encontrei uma tradução para isso, então me baseei num antigo nome da Irlanda, Eire, e nos exemplos "afro-americano" e "nipo-americano" para cunhar esse vocábulo, preferindo deixar o "e" inicial para evitar confusão com alguma proveniência iraniana), mas de origem vocabular desconhecida, embora tenha sido sugerido o Irlandês torc (javali, porco).

[2] O nome do país sul-americano em questão permanece graficamente inalterado na Língua Inglesa.

[3] Harper diz que, pelo mesmo motivo, o milho (indian corn, no original) foi originalmente chamado turkey corn (milho turco) ou turkey wheat (trigo turco) em Inglês.

[4] Encontrei que dinde é o termo atualmente utilizado em Francês para a fêmea do peru, enquanto dindon o seria para o macho. Como poulet d'inde era o nome francês da galinha d'Angola e o peru se apropriou dele, a mesma passou a ser chamada de pintade.

[5] Talvez a versão maior do citado dicionário traga ambos os significados, mas essa verificação fica para depois (a não ser que alguém colabore antes).





REFERÊNCIAS

_________. The origin of the Huns. In: HISTORY FILES. Barbarian Europe. Publicado em: 01 Nov 2002. Disponível em: <http://www.historyfiles.co.uk/FeaturesEurope/BarbarianHuns.htm>. Acesso em: 16 Set 2015.

BARBAROSSA, Hareyddin. The rise of the Turkic peoples. In: HISTORY FILES. Central Asia. Publicado em: 21 Jan 2004. Disponível em: <http://www.historyfiles.co.uk/FeaturesFarEast/TurkicIntro.htm>. Acesso em: 16 Set 2015.

BEZERRA, Frei Hermínio. Palavras, lógica e sentido. In: DIÁRIO do Nordeste. Caderno 3. Publicado em: 14 Mar 2011. Disponível em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/coluna/frei-herminio-bezerra-1.132/mata-ria-947007-1.107719>. Acesso em 16 Set 2015.

COELHO, Luciano Silveira; FREITAS, Amanda Fonseca Soares. Brincando de handebol. Publicado em: 19 Out 2009. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=10237>. Acesso em: 17 Set 2015.

DA SILVA, Dionísio. De onde vem as palavras: Origens e curiosidades da língua portuguesa. 17 ed. Revista e Atualizada. Lexikon. 504p. Parcialmente disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=P3JxBAAAQBAJ&pg=PT825&lpg=PT825&dq=pav%C3%A3o+do+latim+pavonis&source=bl&ots=uZ_IfRwn_b&sig=wioc8wvxtzmecujdIc86eaGrfqM&hl=pt-BR&sa=X&ved=0CCIQ6AEwAWoVChMI9vjW2NL8xwIVyw2QCh3kLA1W#v=onepage&q=pav%C3%A3o%20do%20latim%20pavonis&f=false>. Acesso em: 16 Set 2015.

HARPER, Douglas. Turk (n.). In:___. Online Etymology Dictionary. 2001-2015. Disponível em: <http://www.etymonline.com/index.php?term=Turk&allowed_in_frame=0>. Acesso em: 15 Set 2015.

HARPER, Douglas. Turkey (n.). In:___. Online Etymology Dictionary. 2001-2015. Disponível em: <http://www.etymonline.com/index.php?term=turkey&allowed_in_frame=0>. Acesso em: 15 Set 2015.

HOUAISS, Antônio. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 4 ed. revisada e aumentada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. 1024p.

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