domingo, 20 de setembro de 2015

Além do meme: Novos impostos e impostos novos

   A Língua Portuguesa pode ser classificada como uma língua fácil com regras gramaticais complexas, assim, não se pode querer demonizar determinar algumas utilizações sem antes analisar cuidadosamente uma coisinha ou outra que, embora não pareça num primeiro momento, possui um puta baita sentido.

   No exemplo do presente texto, temos o seguinte meme, cunhado no embalo da criação tarifária do segundo mandato de Dilma Rousseff:


Meme difundido pelo Facebook.

   Como se pode ver pela explicação do meme, o mesmo parte do pressuposto de que o verbo "criar" possui apenas dois significados, isto é, "1 dar origem a, gerar; 2 imaginar, inventar (algo ger. original, novo)", enquanto o adjetivo "novo" teria apenas um, no caso, "que apareceu pela primeira vez, inédito". Entretanto, não é bem assim.
   Segundo o Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa, temos as seguintes acepções para o verbo criar:


cri.ar v. [mod.1] t.d. 1 dar origem a; gerar < extinguir 2 imaginar, inventar (algo ger. original, novo) 3 fundar, instituir [c. um mercado] < aniquilar 4 passar a ter, adquirir [c. fama] < perder 5 educar, sustentar [c. os filhos] 6 p. ext. alimentar, sustentar [c. esperança] < perder 7 cultivar (plantas) [] t.d.i. 8 (prep. para) ocasionar, causar [] t.d.i. e pron. 9 (prep. com) crescer em convívio [] pron. 10 crescer (em determinado lugar)


   Ou seja, teoricamente você pode sim criar algo ou alguém velho, desde que o sentido do verbo criar seja o de sustentar, alimentar, como em "Herculano, meu vizinho, cria um gato velho" ou em "depois de Maria das Graças criar todos os filhos sozinha, apenas a filha Fabiana e o filho Viriato passaram a criaram a velha mulher".
   Quanto ao adjetivo "novo", no mesmo dicionário tem-se o seguinte:


no.vo \ô\ [pl.: novos \ó\] adj.s.m. 1 (o) que é recente, moderno < antigo [] adj. 2 jovem; de pouca idade [um homem n. ainda, mas grisalho] < velho 3 que ainda não foi usado [saia n.] 4 que se encontra no início de um ciclo, de um processo [ano n.] 5 inexperiente, novato [funcionário n.] < experiente 6 que apareceu pela primeira vez; inédito [n. fórmula] < tradicional [] de n.  loc.adv. novamente


   Como se pode ver, há todo um horizonte de possibilidades combinatórias, mas vamos nos ater ao verbo "criar" com os dois sentidos pressupostos pelo meme. Assim, teríamos:



O governo vai criar recentes/modernos impostos;
O governo vai criar jovens impostos;
O governo vai criar ainda não usados impostos;
O governo vai criar no início de um ciclo impostos;
O governo vai criar inexperientes/novatos impostos;
O governo vai criar inéditos impostos.


   Nossa, ficou tudo muito estranho... Algo deve estar errado... E se invertermos as coisas?



O governo vai criar impostos recentes/modernos;
O governo vai criar impostos jovens;
O governo vai criar impostos ainda não usados;
O governo vai criar impostos no início de um ciclo;
O governo vai criar impostos inexperientes/novatos;
O governo vai criar impostos inéditos.


   Perceberam como agora, nessa ordem, as frases soam mais naturais, mas "corretas" e, por mais que o sentido seja estranho (quase todas as frases) ou redundantes (frases 3 e 6), são agradáveis aos ouvidos? Então, isso se dá porque, embora na Língua Portuguesa nós tenhamos uma liberdade sintática que nos possibilita escrever quase qualquer coisa em quase qualquer ordem sem comprometer ou sem comprometer muito o entendimento, alguns adjetivos tem o seu significado alterado dependendo da posição em relação ao substantivo por ele qualificado.
   Assim também o é com o adjetivo "novo", que pode ter um sentido quando posicionado antes do substantivo e outro quando depois. Nos exemplos dados, todos os substitutos do adjetivo em questão ficaram deslocados, estranhos, mau encaixados, quando colocados na mesma posição que ele aparece na frase original, mas o mesmo não ocorre com o próprio adjetivo, com um porém: apenas em alguns casos "novos" antes de "impostos" terá algum sentido, mais especificamente em "o governo vai criar novos impostos" com o sentido de "recente" ou "moderno".
   Note que o dicionário dá apenas um exemplo onde o adjetivo precede o substantivo, exatamente quando há o sentido de aparecimento inédito, que é exatamente o sentido pressuposto pelo meme. Entretanto, digo que há um equívoco baseado em duas coisas:
   1ª) praticamente não se fala ou escreve esse "novo" pré-substantivo com tal sentido, preferindo-se o "novo" pós-substantivo, como em "Nesta tarde, o cinema exibirá o filme novo (inédito)". O "novo" pré-substantivo com o sentido de "inédito" aparece mais em construções do tipo "o novo filme do diretor Chunda tem sua estréia prevista para março", mas, ainda assim, o adjetivo pode ser perfeitamente vertido para o sentido de "recente" ou de "mais recente", ficando "o (mais) recente filme do diretor Chunda tem sua estréia prevista para março". Ou seja, o sentido de "recente" já vem se fixando como o principal sentido - em relação ao sentido de "inédito" - que o adjetivo "novo" possui quando posicionado antes do substantivo.



O mais recente filme do diretor Chunda, uma autobiografia cheia de realismo fantástico.

   E 2ª) o dicionário (como é esperado) não registra uma acepção possuída pelo adjetivo em questão quando antes do substantivo e que é muito utilizada, isto é, o adjetivo "novo" com o sentido de "outro" ou "diferente", como em "o diretor Chunda fez um novo filme", mas observo que isso depende muito do contexto e do substantivo qualificado. Por exemplo, esse sentido parece não prevalecer quando "novo" precede substantivos referentes a vestimentas.
   Assim, no caso da frase utilizada no meme, o adjetivo "novo" pode perfeitamente ser entendido como possuidor do sentido de "outro" ou "diferente", de modo que temos "o governo vai criar outros impostos" ou "o governo vai criar diferentes impostos". Ambos os casos podem parecer redundantes, pois alguém poderia argumentar que não se pode criar os mesmos impostos nem impostos idênticos a outros, mas é agora que se deve atentar para o sentido do verbo "criar".
   O dicionário utilizado, por exemplo, ao apresentar o significado de "criar" como "imaginar, inventar", abre um parêntese para dizer que é "algo geralmente original, novo", mas não diz nada assim para o primeiro significado, isto é, "dar origem, gerar". Portanto, "o governo vai dar origem a outros impostos" (o governo vai criar novos impostos) é algo completamente diferente de "o governo vai inventar novos impostos" (o governo vai criar novos impostos).
   Por fim, penso que seja válido dizer que há quem diga que "criar novo" é redundância, como a Vânia Maria do Nascimento Duarte, no texto "Discorrendo acerca da redundância", mas que também há quem diga que não é redundância não, como o professor, revisor de texto escritor e consultor linguístico Laércio Lutibergue em "O leitor pergunta: 'Criar novos empregos é redundância?'".

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Grato pela leitura e pelo comentário. Assine o blog, siga-o e mantenha-se informado sobre novos textos. Até.