sexta-feira, 27 de março de 2015

Sobre o Saci: Um parentesco das Arábias

     Bem vindo [1] ao terceiro texto da série "Sobre o Saci", a qual já conta com "Sobre o Saci: Herdeiro de três mundos" e "Sobre o Saci: Ao encontrar, darei três pulinhos". Caso ainda não os tenha lido, fique à vontade para fazer agora ou depois, pois eles não são tão interdependentes.

     Como já visto, o Saci é um excelente símbolo da miscigenação genética e cultural de nosso amado país, uma vez que teve em sua composição elementos indígenas, africanos e europeus, da crença indígena, do candomblé e do cristianismo.
     Acontece que, como nenhuma cultura é inteiramente pura, no sentido usualmente atribuído a esse adjetivo, é quase certo que um ou mais desses elementos de composição já fossem eles mesmos resultantes da mescla de outros - sendo que é muito mais fácil averiguar isso nas contribuições europeias, devido aos registros escritos.
     Entretanto, o motivo para se falar disso não é o encaminhar para uma análise dos possíveis elementos que levaram à composição, por exemplo, do trasgo asturiano ou do Fradinho da Mão Furada, mas sim chamar a atenção para o fato de que os portugueses, quando aportaram nestas terras, já eram fruto de miscigenações genéticas e culturais, pois, quando os muçulmanos (árabes e berberes) invadiram a Península Ibérica, ali estavam godos e remanescentes da cultura romana, sendo que estes, quando lá chegaram, se depararam com celtas, ibéricos e a miscigenação deles, os celtibéricos.
     E por qual motivo isso é importante? Simples: a cultura árabe também pode, direta ou indiretamente, ter influenciado na composição do Saci, essa influência estando passível de ter ocorrido antes ou depois da mescla com elementos indígenas e africanos. Mas que elemento da cultura árabe pode ter entrado no caldo de composição do nosso perneta folclórico?


Os Gênios

     Denominados, em árabe, como jinnī, essas criaturas da cultura árabe são conhecidas entre nós como gênios (em inglês é jinni, plural jinn, ou genie) [2] [3] e são pré-existentes ao surgimento do islamismo, o seu nome sendo oriundo de uma raiz verbal árabe cujo significado tem a ver com "ser coberto/escondido", a denominação, portanto, significado algo como "cobrir, esconder".
     Eles estão presentes no clássico "As Mil e Uma Noites" (que somente aparece com esse nome por volta do século XIII), mas o conhecidíssimo gênio da lâmpada da estória de Aladin não está originalmente lá, pois o conto Aladin é um dos que foram acrescidos conforme as traduções passaram a ser feitas.
     E o quê e quem são os gênios? Segundo a cultura árabe, eles teriam sido criado por Deus (Alá) antes do homem [4], a partir do fogo ou do "fogo sem fumaça" [5], sendo seres de ar ou de fogo capazes ou não de assumir a forma humana.
     A Enciclopédia Britânica menciona três tipos de gênios: ghūl, ghul ou ghoul (traiçoeiros e de aparência alterável); 'ifrīt (diabólicos, malignos); e, si'lā (traiçoeiros e de forma invariável), mas também é dito que, pelas palavra do Profeta do Islã, "há um (jinni) que voa através do ar, um que rasteja e persegue e um que fica e viaja por lugares".
     Quanto às nomenclaturas, Ibn Abdul Barr diz que os jinn, de acordo com os estudiosos da língua (árabe, creio eu), são as seguintes:

1 - Jinni, plural jinn: utilizado para se referir aos gênios em si, de forma geral;

2 - Aamar, plural amaar: utilizado para se referir aos gênios que vivem entre os homens;
3 - Arwaah: utilizado para se referir aos gênios que atormentam os jovens;
4 - Shaitan, plural shayateen: utilizado para se referir aos gênios maus que atormentam os humanos;
5 - Afreet: Utilizado para se referir aos gênios que causaram ainda mais danos e se tornaram mais fortes. [6]

     De qualquer forma, eles seriam capazes de habitar em todos os possíveis objetos inanimados, bem como sob a terra, no ar ou no fogo, possuindo, ainda, as mesmas necessidades físicas do homem [7], mas sendo livres de todas as restrições. Além disso, é dito que eles se deliciam em punir os homens por qualquer dano - intencional ou não - que lhes for provocado, a responsabilidade por muitas doenças e acidentes lhes sendo atribuída. Porém, se alguém souber o procedimento mágico adequado, pode explorar os gênios em seu próprio benefício.
     Agora, o que faria os gênios se deliciarem em aplicar punições aos homens? Talvez, talvez, isso esteja relacionado com a criação do homem e o tratamento que lhe fora dado, uma vez que, ao ter criado Adam, Deus teria ordenado a todos que se curvassem diante dele, nesse "todos" estando incluídos os anjos e os gênios. Entretanto, é dito que os gênios (ou parte deles), liderados por Íblis (em inglês, Iblees), não fizeram o ordenado.
     E isso justificaria o prazer dos gênios em atormentar os homens? Sim, justifica desde que paremos para pensar no seguinte: Imagine que você pertence a uma espécie que possui as mesmíssimas necessidades fisiológicas de um ser humano, mas que, diferentemente dos homens, não possui restrições físicas, podendo assumir outras formas e fazer outros feitos. Então, você se curvaria a uma criatura que não lhe é superior, como se ela fosse? Se fosse ordenado a você se curvar a uma formiga ou a uma ameba, você se curvaria?
     Bem, a ordem vinda da única divindade existente, que te criou e que pode te pulverizar antes que você me pense em dizer "Bazinga!", não é o mesmo que a ordem dada por um amigo, por exemplo. E é aí que está o X da questão, pois é dito que os gênios teriam se rebelado contra a ordem de Deus por orgulho, arrogância e inveja. Portanto, seguindo a lógica que muitos religiosos abraâmicos adoram utilizar, isto é, a lógica do teste proposto por Deus [8], pode-se dizer que Íblis e os seus não passaram no teste de humildade que lhes foi feito e que a raiva sentida por conta da ordem para se curvar a criaturas tão inferiores teria sido mantida e passada de geração para geração entre os gênios.


O Gênio e o Saci

     Agora que já sabemos um pouco sobre os gênios (sim, um pouco, existe muito mais coisa), o que diabos eles tem a ver com o Saci? Coisa suficiente. Primeiramente, é importante ter em mente que a primeira edição (ocidental) de The Arabian Nights (As Mil e Uma Noites) não continha ilustrações, as primeiras versões ilustradas aparecendo somente no final do século XVIII (a história da ilustração do livro em questão pode ser conferida aqui). Por que falo nisso?

     Porque a imagem dos gênios que tradicionalmente temos na cabeça são oriundas da clássica animação da Disney, Aladdin, bem como de produções cinematográficas como The Arabian Nights ou da telessérie Jennie é um Gênio, todas mostrando gênios com o corpo antropomórfico, sendo que muitas vezes se manifestam com aparência humana apenas da cintura para cima, a parte de baixo do corpo correspondendo a uma coluna de fumaça que vai afunilando-se até a entrada da lâmpada ou garrafa. Essa imagem poderia ser facilmente associada com o Saci, possuidor de apenas uma perna, a qual, na primeira ilustração feita para o inquérito de Monteiro Lobato, não continha um pé humano.
     Entretanto, muitas ilustrações mostram gênios dotados de duas pernas, como essa:


The sleeping genie and the lady (Sir John Tenniel, 1865)

     Isso porque, no Arabian Nights sem os contos acrescentados por Galland, como "Aladdin" e "Ali Baba e Os Quarenta Ladrões", apenas dois gênios aparecem aprisionados, no conto A História da Cidade de Brass e num conto em que um pescador encontra uma lâmpada, sendo que, nessa última, o gênio aprisionado é do tipo "marid" (lembram quando eu disse que tem muito para se falar sobre os gênios? Então), apontando como o tipo mais poderoso e frequentemente maligno, os indivíduos dessa espécie sendo os que mais comumente são encontrados aprisionados.

     Portanto, apesar de as versões ilustradas do supracitado livro terem iniciado na mesma época em que o Saci estava sendo confeccionado, podemos quase descartar (nesse momento, pelo menos) uma associação entre a perna única do Saci e os membros inferiores em uma só coluna de fumaça do gênio engarrafado. O "quase" se dá porque a mais antiga ilustração de um gênio "esfumaçando-se" para fora de um recipiente que eu encontrei foi essa:





     Essa ilustração é uma vinheta em xilogravura presente na primeira edição da tradução, feita por Edward Lane, de "As Mil e Uma Noites" para o inglês. Como essa edição teria sido feita por volta de 1840, calculo que a data também seja válida para a ilustração. De qualquer modo, é realmente complicado rastrear quando exatamente ocorreu a primeira representação de um gênio esfumaçando-se para fora de uma pokebola um recipiente prisão (pois a influência poderia ter se dado, por exemplo, durante a ocupação islâmica da Península Ibérica), de modo que é melhor se ater a outras características [9]. Quais?

     O aprisionamento em uma garrafa e a possibilidade de servilismo devido à libertação, por exemplo. No primeiro caso, há contos de gênios presos em garrafas, sendo que encontrei por aí que há a necessidade de se gravar o nome de Alá na saída do lugar (não necessariamente uma garrafa) em que o gênio for aprisionado. Bem, acontece que isso coincide com a necessidade de a rolha que tampa a pokebola garrafa prisão do Saci ter uma cruz gravada, ou seja, essas criaturas compartilham a fraqueza aos símbolos religiosos monoteístas (i.é: pertencente a alguma religião abraâmica).
     Quanto à possibilidade de servilismo devido à libertação, isso é bastante evidente, mas não é uma regra para os gênios, os quais podem servir ao seu libertador, realizando-lhe um ou mais desejos, mas também podem descarregar sua ira em cima de quem o libertar. Já o Saci, por sua vez, encontra-se aprisionado a regra do servilismo, mas somente por um detalhe não compartilhado com os gênios: os seus poderes são oriundos do gorro vermelho, de modo que a servidão se mostra como uma troca. Diz-se, ainda, que a servidão de um gênio também pode ser conseguida de outra forma, desde que a pessoa conheça os procedimentos mágicos adequados.



Conclusão


     Por fim, dado o período de ocupação árabe muçulmana da Península Ibérica e considerando que o período em que as primeiras versões ilustradas de As Mil e Uma Noites apareceram no ocidente coincide com o período de provável aparecimento da figura do Saci no folclore brasileiro, além das similaridades apresentadas, podemos sim concluir que não somente há a possibilidade de o gênio oriundo da cultura árabe ter contribuído para a constituição do Saci, como ela é alta.





Notas

[1] Eu não sou adepto dessa "papagaiada", por assim dizer, de colocar feminino para tudo, como se a linguagem interferisse no pensamento, ideia essa que encontra fundamento na Hipótese de Sapir-Whorf, a qual já foi refutada e é desacreditada por muitos (mas não por certos grupos seguidores de determinadas ideologias). Aliás, tenho um ensaio exatamente sobre isso para finalizar e publicar por aqui mesmo. Uma mostra de "linguagem interferindo no pensamento e, por extensão, no comportamento" pode ser vista na novilíngua, desenvolvida pelo governo totalitário de esquerda (socialista) descrito por George Orwell, no livro "1984".

[2] Cabe informar que as palavras lusófona "gênio" e anglófona "genie" não são derivadas do nome árabe dessas criaturas, mas sim do latim genius - denominação dada ao duplo espiritual que todos possuiriam, dentro das crenças do mundo antigo, e que em muito se assemelham aos exús pessoais. Também cabe informar que há quem afirme que a noção do gênio presente na cultura romana surgiu a partir do domínio da região que compreende a moderna Síria, na qual havia o culto aos jny/gny/ginnaya - entretanto, eu penso não ser procedente isso, pois os gregos tinham o daimon/daemon, que era idêntico ao genius romano.


[3] O termo djinn também é comum.

[4] Nem o Alcorão, nem a Suna estabelecem exatamente quanto tempo antes da humanidade, mas há quem fale de mil ou mesmo dois mil anos antes.

[5] Essa expressão seria uma metáfora para o ar quente do deserto.

[6] No meu entendimento, um aamar poderia se tornar um arwaah e este um shaitan, que poderia se fortalecer e virar um afreet.

[7] Podem, inclusive, morrer, transar e procriar - não necessariamente nessa ordem.

[8] Um exemplo dessa lógica é a resposta usualmente dada para a pergunta "Se Deus é onisciente e criou o homem, já sabia da tendência natural do ser humano de querer violar proibições (quem nunca viu um lugar contendo uma placa de 'não jogue lixo' cheio de lixo?), então, se Ele realmente queria que Adam e Eva não comessem do tal fruto proibido, por qual motivo disse para eles não comerem?", isto é: Porque era um teste!

[9] É possível associar a coluna de fumaça do gênio saindo da prisão com o redemoinho utilizado pelo Saci para se locomover e que é compartilhado com outras personagens folclóricas portuguesas, já mencionadas noutros textos.







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