sábado, 7 de março de 2015

Sobre o Saci: Herdeiro de três mundos

     Em algumas ocasiões específicas me deparei com discussões ou descobertas sobre a personagem folclórica chamada de "Saci". A primeira se deu no segundo semestre do ano passado, quando me deparei com discussões em torno do Dia do Saci e sobre como essa figura folclórica seria um instrumento para denegrir o negro/o afro-descendente/o afro-brasileiro, pois praticamente teria sido inventada por Monteiro Lobato. Confesso que num primeiro momento eu fiquei indignado com isso, pois jamais me senti discriminado pela figura do saci ou por qualquer outra coisa escrita por Lobato, e que num segundo momento me pus a rir (para não chorar) do fato de como a desinformação é utilizada para corroborar determinados discursos que mais fomentam o ódio do que qualquer outra coisa.

     A última dessas situações se deu no começo desse ano, quando uma colega publicou no Facebook que nunca havia se atentado para as mãos furadas do Saci. Em ambas as situações eu compartilhei o que sei - por meio de leituras diversas - sobre o Saci e, como o folclore é algo deveras interessante e, às vezes, pouco explorado, pretendo fazer o mesmo por meio deste texto, o primeiro de uma série.



Com vocês, o Saci!



O Saci, presente no inquérito feito por Lobato.


     Em geral é muito trabalhoso ou mesmo virtualmente impossível definir a origem de determinados mitos, lendas ou costumes, mas certas coisas são tomadas como certeza, no que tange ao Saci: 1) o nome é oriundo do tupi sa'si, que seria a onomatopeia para o pio da Matinta-Perera (Tapera naevia); 2) ele corresponderia a uma fusão muito bem feita de elementos de distintas culturas, no caso, da europeia com a africana e a indígena; 3) Não há registro dele antes do século XIX [1]; 4) possui um gorro vermelho.
     Então, o fato de não haver registro do Saci antes do século XIX indica que, nos séculos anteriores, as figuras e contos que o compõe estavam sofrendo o processo de sincretização que culminou com o seu aparecimento - o qual deve ter se dado por volta do século XVIII, uma vez que os registros escritos tendem a não ser instantâneos ou contemporâneos. Que figuras e contos seriam esses?
     Há vários, e a página do site Fantastipédia (que, como toda wikia, é editável e, portanto, útil como ponto de partida) que trata do Saci lista várias figuras relacionadas a ele, mas considerarei aqui apenas as seguintes: Matinta-Perera, Exu, o Fradinho da Mão Furada, o trasgo asturiano e Ossãe [2] [3].



A Matinta-Pereira e o Saci-Pererê



Matinta-Perera, a ave.


     Conforme já dito, a ave matinta-perera empresta o seu pio para nomear o Saci, sendo ela mesma a protagonista de outra lenda. A personagem folclórica Matinta Perera, também chamada Matinta Pereira, Matim-Taperê, Maty-Taperê ou simplesmente Matinta, seria uma espécie de feiticeira capaz de se transformar em pássaro e com gosto por fumo, sendo que há quem diga que em algumas regiões do Brasil a mesma possui aparência semelhante à do Saci, enquanto outros afirmam que o pássaro preto que inspirou a lenda teria o costume de pular numa perna só, tendo se transformado, com o tempo, no Saci. De qualquer modo, é certo que ambas as lendas possuem relação, sendo provável que a Matinta Pereira seja componente da lenda do Saci.




A Matinta folclórica



Saci: "Exú Pererê" ou resquício do orixá Exú?

     Exu é outro possível elemento de composição da lenda do Saci, mas é preciso saber, antes, o que vem a ser o Exú. Basicamente, há um definição para o candomblé e outra para a umbanda. No candomblé, há um orixá chamado Exú, o qual possui muitos nomes (Eleguá, Elebara, Bara, Akesan, Iangi, Onan, Exú Tiriri, etc) e um papel importantíssimo dentro da ritualística, sendo que é dito, ainda, que todos possuem o seu próprio Exú. Quanto há umbanda, o termo Exú designa apenas entidades de luz que atuam como protetoras e conselheiras dos "filhos de fé", mais ou menos como os anjos da guarda, no catolicismo, sendo que cada uma dessas entidades terá origem e histórias distintas.




O orixá Exú, tendo na mão o Ogó.


     Quanto ao Exú como elemento de composição do Saci, somente pode ser o orixá, pois a umbanda surgiu somente nos fins de 1908, ou seja, no século XX. Mas quais seriam os elementos de correspondência do orixá Exú com o Saci? Basicamente, o gorro vermelho, a faculdade de deslocamento (o que ele faz por meio de seu bastão em forma de pênis, o Ogó, o qual também pode atrair magneticamente objetos, tal como o Saci some com as coisas), o gosto ou habilidade para provocar distúrbios (como na história do gorro de duas cores), o cachimbo e o pássaro (pois este é o símbolo do elemento procriado, pelo qual Exú toma forma, jamais manifestando-se como procriador).



O orixá Ossain na figura do Saci

     Também grafado (entre outras formas) Ossãe, o nome deste orixá costuma levar muitos a pensarem que o mesmo é do sexo feminino (eu mesmo, sempre que leio fico na dúvida), mas não, Ossain é do sexo masculino e personifica o reino vegetal, as plantes, as folhas. Ele encontra-se presente na figura do Saci em três pontos: O fumo, o pássaro e a cor verde.






     O fumo é um elo porque o Saci possui um cachimbo e os Zeladores de Santo devem deixar, junto à planta cortada, oferendas na forma de moedinhas e fumo de corda com mel.

     O pássaro liga Ossain ao Saci por conta da origem onomatopaica do nome deste último [4], relacionada ao pio do pássaro Matinta-Pereira (e que relaciona o Saci à figura folclórica de mesmo nome), e devido ao símbolo do orixá, que é um ferro de sete pontas com um pássaro na ponta central, representando um pássaro pousado sobre uma árvore de sete ramos.
     O terceiro ponto de relação é a cor verde, ou melhor, eu relaciono aqui a cor verde porque há quem veja verde no lugar do vermelho e vice-versa, então...
     O quarto ponto diz respeito à lenda que explica a divisão das folhas de Ossain com os demais orixás:


Ossain havia recebido de Olodumaré o segredo das ervas. Estas eram de sua propriedade e ele não as dava a ninguém, até o dia em que Xangô se queixou à sua mulher, Oyá, senhora dos ventos, de que somente Ossain conhecia o segredo de cada uma dessas folhas e que os outros orixás estavam no mundo sem possuir nenhuma planta. Oyá levantou as saias e agitou-as impetuosamente. Um vento violento começou a soprar. Ossain guardava o segredo das ervas numa cabça pendurada num galho de árvore. Quando viu que o vento havia soltado, e, que esta tinha se quebrado ao bater no chão, ele gritou 'Ewé O! Ewé O!' - "Oh! As folhas! Oh! As folhas!" -, mas não pôde impedir que os orixás as pegassem e as repartissem entre si.



     Nela, pode-se ver dois outros elementos presentes na lenda do Saci, sendo um deles o vento, enquanto o outro é o recipiente, isto é, a cabaça/garrafa.

     Por fim, mas não menos importante, há o quinto ponto de relação: Ossain vive na floresta, na companhia de Àrònì, um anãozinho de uma perna só e que fuma um cachimbo feito de casca de caracol [5].



Àrònì


O Saci e o Fradinho da Mão Furada

     A semelhança do Saci com toda sorte de duendes europeus e comum, havendo até mesmo quem o compare com Puck (ANASTASIA. p.383), mas eu penso que seria enganoso comparar o Saci com todo e qualquer duende, uma vez que eles correspondem a um arquétipo. Portanto, por uma questão de herança cultural, é muito mais provável que o Fradinho da Mão Furada tenha entrado no caldo de composição do Saci do que o Puck.





     E quanto ao Fradinho, as semelhanças com o Saci já começam na aparência, pois ele utiliza um encarnado barrete encantado (pela qual a criatura daria fortunas para recuperá-la) e tem as mãos furadas, tal como a representação do Saci na região de São Paulo (embora algumas mostrem apenas a mão esquerda), e se estende ao comportamento traquinas, embora seja dito que o Fradinho da Mão Furada (também chamado de trasgo) é uma personificação dos pesadelos (CASCUDO).




A ascendência asturiana do Saci

     O último elemento (que considero como sendo) de composição do Saci é proveniente da região das Astúrias, atualmente na Espanha: o trasgo ou trasgu asturiano [6].

     Essa criaturazinha veste-se com roupas semelhantes às humanas e usa um barrete vermelho, sendo geralmente coxo ou tem a mão esquerda furada. Como o Saci e o Fradinho da Mão Furada, não é maligno, apenas travesso, gostando de ajudar, à sua maneira, nas tarefas domesticas. A maneira para se livrar de um trasgo asturiano é desafia-lo na realização de uma tarefa impossível, como transportar água numa cesta, lavar uma ovelha negra até ficar branca ou mandá-lo apanhar grãos de milho espalhados pelo chão, o trasgo ficando ali, incessantemente apanhando os milhos que escapam pelo buraco na mão esquerda.



O trasgu asturiano.


     Portanto, as características asturianas herdadas pelo Saci são o barrete vermelho, a mão furada e o comportamento traquinas. Quanto à ausência de uma perna, isso se relaciona como extensão da deformidade física do trasgo, que pode ser coxo (note que a descrição é de ou ser coxo ou ter a mão furada, enquanto o Saci de São Paulo e proximidades combina essas características, sendo mão furada e perneta).



Concluindo


     Como foi visto, não é coerente essa estória de que Monteiro Lobato criou o Saci como ato racista ou algo do tipo, sendo nítido que as características dele são pré-existentes em outros personagens folclóricos ou religiosos [7] da(s) cultura(s) indígena(s), da cultura ibérica e da(s) cultura(s) africana(s). O curioso é que a personagem era apontada como assustadora, assemelhando-se, ao meu ver, a um pesadelo personificado, a responsabilidade pela amenização da figura, tornada pueril, cabendo ao Lobato.

     Portanto, sim, o Saci é um excelente exemplo da miscigenação genética e cultural ocorrida no Brasil e, penso eu, que é completamente tolo querer fazer dele um símbolo de ódio racial (ódio esse que só serve para atender aos interesses de certos grupos) ao invés de utilizá-lo para fomentar a tolerância (pois as características africanas, indígenas e europeias coexistem harmoniosamente nele) e favorecer o fim dessas ultrapassadas ideias racistas.
     Por fim, lembro que esse é o meu posicionamento quanto à origem e a composição dessa personagem folclórica, sendo que Câmara Cascudo e vários outros autores tratam o assunto diferentemente, incluindo nesse caldo, por exemplo, outros personagens que deixei de fora, como o Yací Yateré ou o Puck. Enfim, recomendo a leitura deles.





Notas


[1] Portanto, Monteiro Lobato não inventou o Saci, como alguns dizem, pois o "Mitologia Brasílica - Inquérito sobre o Saci-Pererê" foi, por ele, realizado em 1917, ou seja, no começo do século XX.

[2] Desconsiderei o sanguanel, de origem ítalo-gaúcha, por dois motivos: primeiramente, ele não lembra muito o Saci, estando mais para Curupira, e, segundo, porque ele teria aparecido por aqui em fins do século XIX, quando o Saci já havia sido registrado (o primeiro registro é do começo do século mencionado) - sem contar que o site Fantastipédia diz bem claramente que ele foi associado ao Saci, e "ser associado" não é o mesmo que "servir de elemento de composição".

[3] Também desconsiderei o Yací Yateré porque ele se assemelha muito ao curupira, embora exista relação no que cerne à Matinta-Perera. Pode-se considerar que essa lenda, a da Matinta e a do Curupira possuam uma fonte em comum, de modo que parece ser mais sensato considerar somente a figura da Matinta como elemento de composição do Saci.


[4] Pode ser, também, que o nome do Saci se origine do de Ossain mediante: 1) a desnasalização (Ossai) seguida de acréscimo do som de [s] para manter o padrão português de sílabas em CV, ficando, portanto, Sossai, antes do [o] ser engolido pelo [a], passando a Sassai e, então, assumindo a forma atual; 2) a perda da parte inicial, confundida com o artigo definido "O" [Ex.: "Ossain", "O Sain", "um sain"], seguida da desnasalização (Sai) com duplicação do som de [s] (Sasi).


[5] E por falar em caracol, tu já lestes o ensaio sobre o significado do Caracol no desenho Hora de Aventura? Não? Então leia, oras.


[6] Existem outros trasgos, como o provençal, e não, o trasgo que aparece no Harry Potter não é um trasgo, apenas uma tradução infeliz para o troll, criatura completamente diferente de um trasgo.


[7] Existe diferença suficiente (e, por vezes, relativa) entre o que é folclórico (Puck, Saci, Fradinho, trasgo) daquilo que é religioso (Exú, Ossain) e do que é mitológico, tanto que pretendo fazer um texto apenas sobre isso.







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