domingo, 8 de março de 2015

Sobre o Saci: Ao encontrar, darei três pulinhos

     Antes de tudo, este texto é o segundo de uma série iniciada por "Sobre o Saci: Herdeiro de três mundos". Então, caso ainda não tenha lido, sugiro que leia.
     Quanto ao Saci, neste texto veremos mais uma personagem que pode ter servido de tijolo para a sua construção ao longo dos séculos, pois a sua participação na composição do nosso perneta folclórico favorito é perfeitamente possível, visto que surgiu muito antes do nascimento da língua portuguesa e possui algumas características que podem ser facilmente associadas. Sim, São Longuinho e o Saci possuem mais em comum do que aparentam.




Sobre São Longuinho





     Esse santo, que pode ser facilmente confundido com um dos vários casos de santos canonizados pelo povo, e não pela Igreja, e desprovidos de existência enquanto ser humano de carne e osso, é mais sério do que parece e, talvez, você conheça muito bem a história dele [1], apenas não atribuindo a ele. Vamos a ela.

     Segundo o que encontrei aqui e aqui, durante o primeiro século da Era Cristã, teria vivido um centurião romano chamado Cássio, o qual acabou sendo escalado para vigiar Cristo na cruz. Tradicionalmente [2] diz-se que haveria a tradição de quebrar os pés dos crucificados para facilitar a retirada da cruz, mas, como o crucificado em questão já estaria com os pés soltos, Cássio teria usado a lança para perfurar o lado esquerdo do corpo e o sangue que escapou desse ferimento respingou em seus olhos.
     Como Cássio sofria com um problema de vista (apontado por alguns como sendo uma "cegueira espiritual"), o sangue o curou e ele teria sido o primeiro a reconhecer Cristo como o "Filho de Deus" [3], abandonando, então, o exército e sua moradia, refugiando-se na província de Cesarea, na qual se tornou monge, percorrendo-a, bem como a Capadócia, para levar a palavra de Cristo. Posteriormente, também passou a realizar prodígios.





     Porém, acabou irritando o governador da Cesarea após o secretário deste se converter. Com sua identidade de centurião descoberta, foi denunciado a Pôncio Pilatos, em Jerusalém, e condenado à morte, caso não oferecesse incenso no altar do imperador [4]. Nem é preciso dizer o que aconteceu, não é mesmo?
     Santificado, Cássio - que foi identificado devido à lança, que em grego se dizia lonkh, palavra que deu o latim Longinus, usado para se referir aos mártires - foi nomeado São Longuinho e  é celebrado no oriente e no ocidente, mas no primeiro há diversos dias para isso, sendo que 16 de outubro é a data mais comum. Quanto à Europa e às Américas (Brasil incluso), a data para celebrar o santo é 15 de março, sendo muito popular na Espanha, em Portugal e no Brasil - embora, por aqui, só tenha uma igreja, em Guararema, SP.
     Considerado o "santo achador", invoca-se São Longuinho mediante a fórmula (e variações) "São Longuinho, São Longuinho, ao encontrar darei três pulinhos", sendo que, ao encontrar e dar os tais pulinhos (que podem ser mais de três, dependendo do valor daquilo que se procura), diz-se "Achei São Longuinho" três vezes, ou se dá três gritinhos.


O que São Longuinho tem a ver com o Saci?


     Para começo de conversa, ambas as entidades folclóricas (sim, no plural, pois há quem julgue que o santo em questão não existiu realmente) possuem função de "achadores". 'Tá certo que não me recordo de alguma vez ter recorrido ao Saci para encontrar alguma coisa, nem de alguém que o tenha feito, mas, aparentemente, isso ocorre lá pras bandas de São Paulo [5].

     Agora, para o meio da conversa, foi mencionado no começo do texto que o santo poderia ter servido de elemento de composição para o Saci por conta do seu tempo de existência, só que a popularidade dele na Península Ibérica também reforça isso, mas, de que forma ele poderia ter contribuído para a formação do Saci?
     Sendo provável que a atuação como "achador" tenha surgido antes do descobrimento do Brasil, São Longuinho pode ter vindo para estas terras já com essa função e assim permanecido, como o achador oficial, até que acabou emprestando tal encargo para outras personagens, sendo mais provável que isso tenha acontecido no sincretismo realizado por alguns escravos, combinando "a faculdade de achar" do santo com "a capacidade de atrair objetos diversos do orixá Exú". No caso, a lança do santo e o bastão fálico do orixá seriam facilmente combináveis, até mesmo pela forma. Portanto, para mesclar ambas seria "um pé" - e que Saci perdoe pelo trocadilho.
    E, para combinar, o terceiro ponto em comum entre o santo cuja lança teria sido procurada por muitos (incluindo Napoleão e Hitler, dizem) e o Saci é o número três, que está presente no folclore de ambas as personagens, uma vez que se promete, no mínimo, três pulinhos para São Longuinho e se dá três nós num barbante (ou palha de milho) para fazer o Saci devolver os objetos perdidos.
     Por fim, note que, como o Saci devolve os objetos porque fica com uma tremenda vontade de urinar, seria possível criar relação entre os pulinhos prometidos ao santo com prováveis pulinhos dados por um Saci tentando segurar a urina, de modo que poderia ser um empréstimo ocorrido durante o processo de sincretismo. Entretanto, como a oração ao Santo também ocorre da mesma forma na Espanha (lá eles prometem "saltitos"), isso é improvável, sendo mais viável que essa estória de pulinhos tenha surgido porque, entre outras possibilidades, ao achar a fé para a qual era cego, o centurião tenha dado alguns pulos [6].




Notas


[1] Em Mateus (27:54), Marcos (15:39), Lucas (23:47) e João (19:34). As epístolas dos Santos Padres e martirológios ocidentais e orientais também o mencionam.


[2] Não é difícil encontrar por aí que não haveria essa tal tradição de quebrar os pés do crucificado.


[3] Os dois textos consultados não deixam bem claro isso e como é ruim de abrir muitas abas no Chrome, verificarei as passagens bíblicas citadas depois, mas penso que essa afirmação tenha se dado após o respingo do sangue, já que antes disso ele era "espiritualmente cego".


[4] É importante ter em mente que não era exatamente a figura do imperador que era cultuada, mas sim o seu daemon (ou daimon ou demônio) ou gênio, uma entidade que todas as pessoas possuiriam e que, grosso modo, equivaleria a um misto de espírito com anjo da guarda, embora o seu conceito mais aproximado atualmente se encontre nos "exús pessoais".


[5] Se você já recorreu ao Saci ou conhece quem o tenha feito (ou faça), comunique e compartilhe o método usado.


[6] Penso que ele dar pulos por encontrar (um)a fé seja mais coerente do que certas estórias, nas quais um centurião romano em plena atividade é desprovido (do movimento) das pernas.




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