quarta-feira, 24 de junho de 2015

Você se ofendeu ou foi ofendido?



     Independentemente de a resposta indecorosa do jornalista Boechat ao famigerado Pastor Silas Malafaia ter lavado a alma de muitos, não demorou muito para surgir uma problematização (e mesmo uma crucificação do jornalista) em cima da mesma, pois ela supostamente estaria carregada de preconceito contra gays e machismo [1].

     Qual o problema com o "vai procurar uma rola"? Segundo os problematizadores, tal frase carrega principalmente duas ideias: 1) a de que uma rola (e, por extensão, um homem) resolve todos problemas; 2) a de que o indivíduo que ouviu a resposta seria um homossexual enrustido e deveria procurar um pênis por aí para fazer o que bem entendesse, para se realizar, se completar ou sei lá o quê, como se isso fosse um problema, algo ruim. Devesse-se ressaltar que o segundo ponto também é aplicado para as mulheres heterossexuais ou não.
     E aqueles que problematizam a resposta dada estão errados? A meu ver, sim, e estão exagerando, principalmente porque desconsideram completamente (e isso é muito comum de se ver, infelizmente) duas coisas: 1) o contexto em que uma expressão é usada e a intenção do utilizador; e, 2) que nenhuma expressão idiomática deve ser interpretada literalmente.





     Dentro do primeiro ponto, é importante ressaltar uma das primeiras coisas que se aprende em linguística: TODA LÍNGUA MUDA, e essa mudança se dá tanto no tempo quanto no espaço, entre outros fatores. Deste modo, uma palavra ou expressão que surgiu centenas de anos atrás com um sentido apreciativo pode, nos dias de hoje, ter um sentido depreciativo ou vice-versa. Exemplos disso são as palavras "cretino" (outrora apreciativa e atualmente depreciativa) e periguete (que deixou de ser ofensiva, principalmente depois da novela "Avenida Brasil").
     Ora, se no passado foram cunhados termos como "judiar" e "denegrir", respectivamente significando "tratar o outro como se ele fosse judeu" e "tratar o outro como se ele fosse negro", no presente esse sentido foi esquecido pelo senso comum. Tanto que a população comum e não afeita à etimologia não deve sequer pensar a respeito quando as utiliza, até alguém as apresentar essa história (como estou fazendo agora). O problema é que, ao fazer isso com a intenção de reprimir, de coibir o uso, alegando que judeus e negros ficam ou ficarão ofendidos (nunca me ofendi com palavras e expressões, mas sim com atitudes e comportamentos), a pessoa está simplesmente negando a evolução semântica do termo, impedindo que ela sirva de roupagem para outros sentidos, abandonando definitivamente aquele que ela tinha quando surgiu. Inclusive, o termo judiar até mesmo já ganhou uma utilização sexual, que me parece ser mais frequente.
     Enfim, o contexto de utilização do passado não é o mesmo do presente e o do futuro provavelmente será outro, deste modo, é exagerado - para não dizer que é absurdo - afirmar que tais termos, bem como outras expressões de origens alegadamente discriminatórias, continuam a ser utilizados com o exato sentido do passado.
     Primeiro porque a esmagadora maioria das pessoas não tem conhecimento acerca dessas alegadas origens e, mesmo que tivessem, ninguém para para pensar acerca da etimologia de cada palavra e expressão antes de utilizá-la, para? Claro que não, isso não é nada prático e, além disso, não deixa de ser um processo de (auto)aprisionamento, onde a pessoa torna-se refém do próprio pensamento... Uma prisão sem muros.
     Segundo, porque ninguém utiliza determinadas palavras sempre com a intenção de ofender, de depreciar, ou será que um homem que chegue para um amigo dizendo "Fala, viado! Tá sumido!" está utilizando o termo "viado" com o objetivo de ofendê-lo e acusá-lo de homossexual enrustido? Claro que não, esse é um exemplo de utilização social que tem como objetivo reforçar os laços de amizade, como esse texto aqui esclarece melhor. Em resumo, é completamente diferente você proferir determinadas palavras [2] para um estranho e para alguém que seja seu amigo [3]. 





     Continuando, falei que o contexto de utilização deve ser levado em consideração, assim como a intenção do interlocutor, agora falta o segundo ponto, que diz respeito ao entendimento literal. Uma "expressão idiomática", também chamada de "figura de linguagem", "linguagem figurada" e "modo de dizer", não deixa de ser uma metáfora e, como tal, não pode ser entendida ao pé da letra, por um motivo bem simples: os seus elementos constituintes foram reunidos (sabe-se lá por quem, quando e onde) para significar outra coisa completamente diferente das partes.
     Obviamente, algumas expressões e termos possuem um passado literal, mas eles foram perdidos, principalmente por conta do abandono (quase total) do nominalismo, que é o pensamento de que se você pronunciar determinada palavra, aquilo que ela designa se materializará magicamente. Isso é notável em: Não dizer o nome de Deus em vão (embora não se saiba qual seria a pronúncia exata de YHWH, transferiram esse não pronunciamento para as palavras "Deus", "Cristo" e o nome "Jesus"); não pronunciar a palavra "diabo" (era muito forte isso, mas na atualidade não tem tanta força assim, embora esteja presente no cartoon "Meninas Superpoderosas", por meio da personagem "Ele"), não dizer coisas como "inferno" e "vai pro inferno" (porque, supostamente, a pessoa iria mesmo) e não falar "merda" ou "cocô" durante as refeições (como se um torete de merda fosse se materializar magicamente em meio à comida).





     Assim, da mesma forma que não podemos sempre interpretar um "fulano bateu as botas ontem" como se o fulano tivesse tirado a sujeira da sola dos calçados no dia anterior, não podemos assumir que alguém, ao tropeçar numa pedra e exclamar "Filha da Puta!", esteja chamado a (inexistente) mãe da pedra de puta, nem que, ao dizer algo como "ele deu com os burros n'água" esteja dizendo que uma terceira pessoa levou os seus burros para atravessar um rio ou algo do tipo". Então, por qual motivo "vai procurar uma rola!" deveria ser entendido literalmente, como um "vai procurar um pênis, porque você é um gay enrustido e só fica importunando os outros porque está extremamente necessitado de um bem lá no fiofó"?



Você já deu com os burros n'água alguma vez?


     Não deveria, nem deve, pois, como a reportagem "A Ciência do Palavrão", anteriormente lincada, esclarece, nós não pensamos quando xingamos, é algo automático, algo que não tem nada a ver com a intenção de seguir esta ou aquela linha de pensamento. Tem a ver com a liberação emocional em determinada situação.
     Então, como entender a expressão utilizada? Isso é bem simples,  já que ela carrega o mesmíssimo sentido das seguintes expressões: "Vai lavar uma louça" (dito para quem quer que seja), "vai capinar um lote", "vai ver se estou na esquina", "vai catar coquinho", "vai pentear macaco", "vai tomar banho", "vai dormir" e "vá se foder", bem como "não enche" e "me deixa (em paz)", isto é, " vá fazer algo melhor ao invés de ficar me importunando".



Isso é o que se quer dizer quando se manda alguém ir procurar uma rola...



...E isso é o que um "vem pro pau!" quer dizer. Nem toda pica é literal.


     Por fim, enquanto alguns problematizaram a "rola" levando para o lado sexual, muitos outros preferiram brincar com o fato de a mesma palavra designar uma ave, da família dos pombos. E por qual motivo isso é importante? Porque a pomba (e, por extensão, a rola também, como um amigo me lembrou) simboliza não apenas a Paz (se for branca) como também o Espírito Santo e a esperança de um novo mundo (vide as passagens bíblicas sobre o Dilúvio), de modo que a resposta do jornalista Boechat continua transmitindo a ideia do "vai procurar algo melhor pra fazer e me deixa em paz", com um enfoque ainda maior na "paz" (me deixa em paz, para de atazanar), a qual, aparentemente, o pastor em questão não se mostra nem um pouco interessado em obter e proporcionar, passando uma mensagem que vai completamente de encontro ao que muitos cristãos entendem acerca das escrituras cristãs.








NOTAS

[1] Mas o preconceito contra gays não está implícito no machismo? Não. O machismo é o pensamento de que o varão é um ser naturalmente superior em todos os aspectos em relação à mulher. Se o varão em questão for heterossexual, então essa inferiorização pode ser estendida aos gays, mas o tal machismo é muito presente entre gays. Um prova disso é a discussão entre eles em torno da questão do preconceito de alguns (ou muitos, não sei, nunca me deparei com dados estatísticos sobre) contra os gays efeminados, bem como contra mulheres. O texto no seguinte link, http://www.medicina.ufmg.br/projetohorizonte/artigos.php, borda isso (observação: sou totalmente contra a utilização de "@" ou "x" no lugar de vogais, bem como a supressão dessas mesmas vogais, pura besteira que lembra a novilíngua do livro "1984", de George Orwell).

[2] Na verdade, quando a pessoa é estranha (não amiga) ou os níveis de animosidade estão altos, QUALQUER palavra pode ser entendida como uma ofensa, esse entendimento sendo reforçado pela entonação de voz.

[3] Encerrando  esse primeiro ponto, foi por isso que escolhi o título, já que existe uma grande diferença entre "você se ofender" (ou "se sentir ofendido") e "você ser ofendido". No segundo caso, tem a ver com a intenção real do interlocutor, que é de ofender, isto é, determinada palavra ou expressão realmente foi utilizada com o intuito de ofender, de agredir. No primeiro caso, por outro lado, tem a ver com você julgar que a intenção do outro foi de ofender (mesmo que o outro sequer saiba que o termo por ele usado teve uma significação estritamente ofensiva para determinado grupo a cerca de um século ou mais), é você que se sente ofendido, é uma auto-ofensa, que parte de você para você mesmo. A lógica do apelido se aplica bem a isso: 1) se você simplesmente demonstra não dar a mínima para o apelido que lhe foi dado, as pessoas param de chamá-lo por ele; 2) se você assume o apelido, adotando-o como um segundo nome, uma alcunha, como algo identitário, o caráter de ofensa também desaparece, sendo que, nesse caso, tem-se muitos exemplos oriundos do futebol (sendo, talvez, o mais conhecido o apelido dado aos torcedores palmeirenses, que acabou sendo incorporado pelos mesmos, isto é, "porco").

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Grato pela leitura e pelo comentário. Assine o blog, siga-o e mantenha-se informado sobre novos textos. Até.