Community, telenovelas brasileiras e incesto

     Nas últimas semanas eu me viciei em uma série chamada Community, a qual trata de um grupo de desajustados sociais (o que se chamaria de nerd, noutros tempos, mas como nerd está demasiado na moda, creio eu que não faça tanto sentido) que estudam numa Universidade Comunitária [1] situada na fictícia cidade de Greendale, no Colorado.

Divulgação da sexta temporada de Community.

     Enfim, no décimo segundo e penúltimo episódio da sexta e (provavelmente) última temporada [2] do seriado, intitulado Wedding Videography (Videografia de Casamento), há uma abordagem predominante em torno do incesto, mais especificamente em torno das relações entre primos de primeiro grau. "Tá, e daí?"

     E daí que uma coisa chamou bastante a minha atenção: no fim do episódio, na tradicional parte extra, o autor do episódio aparece e fala sobre a temática abordada, explicando o que o levou a querer tratar disso e criticando a legislação a respeito do assunto, visto que, apesar das comprovações científicas (e ele cita uma matéria do The New York Times sobre o assunto) de que primos de primeiro graus podem tranquilamente ter filhos sem qualquer problema, ainda há a proibição do casamento entre primos de primeiro grau em alguns Estados.

     Ele também esclarece que o episódio somente foi possível porque ele se comprometeu a aparecer no fim dele para se apresentar como o autor, ou seja, assumindo a inteira responsabilidade por ele, no caso de ser ofensivo para alguém. E é esse um dos pontos em que eu quero chegar, a ofensa.

     A temática do incesto não é nem um pouco nova na teledramaturgia brasileira e tampouco na literatura de língua portuguesa, entretanto, ainda nos dias de hoje, há segmentos sociais que se mostram ofendidos com a abordagem do tema nas produções nacionais (diga-se de passagem: no caso das produções televisivas são quase todas ou talvez todas da Rede Globo), vendo isso como uma perversidade - no caso dos segmentos cristãos - ou como uma apelação fetichista - no caso de segmentos mais à esquerda, por assim dizer.

     Acontece que, a meu ver, a ofensa não tem cabimento nem por um segmento nem por outro. Primeiro que alguns dos segmentos ditos cristãos consideram os relatos bíblicos como verdadeiros, fatos históricos, e, se consideram isso, então tem-se que ter em mente que Adão e Eva seriam personagens reais e, portanto, a sua descendência (necessariamente) foi incestuosa e toda a humanidade seria fruto de dois incestos primordiais: o da descendência por Caim juntamente ao da descendência por Set; e o da descendência por Noé. Segundo que os mesmos segmentos cristãos que se baseiam na Bíblia para considerar tal abordagem como uma das perversidades disseminadas para destruir a família e o escambau, convenientemente esquecem da atenção ao incesto que é dada pela Bíblia, podendo-se enumerar pelo menos seis casos de incestos, os quais não listarei aqui porque a Superinteressante já o fez: 6 casais incestuosos da Bíblia.

"Ló e suas filhas", de Gustave Courbet.

     Quanto aos segmentos mais à esquerda [3], essa "ofensa" que alguns chegam a demonstrar é muito mais uma crítica, que me soa como uma hipócrita crítica anti-Globo. Hipócrita porque os mesmos (dentro desses segmentos) que apedrejam tais produções (frequentemente) globais como sendo apelativas e tal e coisa são os que aclamam fervorosamente produções estrangeiras que abordam o mesmo assunto, como o (excelente) filme sul-coreano Oldboy e a franquia literária e televisiva A Song of Fire and Ice/Game of Thrones [4]. Tudo em nome do sentimento anti-Globo, sendo que, sem a tal emissora, dificilmente teríamos qualquer produção passível de ser considerada nacional ou que ao menos lançasse qualquer assunto considerado como pecaminosidade ou perversidade em discussão, mas apenas reprises de produções de países hermanos e versões brasileiras de tais produções.

     Concluindo, é interessante ver que o Brasil não é o único país com problemas do tipo "se você quer falar sobre esse assunto, então assuma a responsabilidade como autor e não nos meta nisso" e que esse tipo de situação não é coisa de países de terceiro mundo, da mesma forma que é sempre bom poder mostrar que as mesmas temáticas "polêmicas" que são abordadas por produções globais se encontram em produções estrangeiras aclamadas - o que torna os ataques feitos por conta das temáticas verdeiros atos de hipocrisia, sem contar que é um tanto impróprio querer colocar, em todos os aspectos, uma telenovela lado a lado com uma telessérie, visto que são gêneros distintos. Os estadunidenses são especialistas em séries, possuindo verdadeira cultura em torno disso, aparentemente não sendo lá muito hábeis com novelas (sim, eles tem novelas por lá), que nós, brasileiros, já temos como uma especialidade.

Imagem retirada daqui.

NOTAS

[1] Diferentemente do Brasil, os Estados Unidos da América não possui um Ensino Superior centralizado, a nível federal, lá havendo as universidades estaduais, as universidades particulares, os institutos de tecnologia e as universidades comunitárias (chamadas, no singular, de community college). Estas últimas costumam ser desmerecidas (ao menos em filmes e telesséries), consideradas como pseudo-universidades, e o seu diploma (quem se forma numa commmunity college é designado um associate) não tem validade no Brasil, porém elas são uma ótima forma de entrar numa Universidade Estadual, visto que os anos nelas podem ser creditados nas outras, havendo, inclusive, a opção de já entrar nelas com o objetivo de se transferir para uma Universidade Estadual, existindo, ainda, feiras de transferência, organizadas para que elas possam selecionar alunos das community college. Mais sobre o Ensino Superior estadunidense pode ser conferido aqui, aqui e aqui.

[2] A série teve cinco temporadas pela NBC, indo de 17 de setembro de 2009 até 09 de maio de 2014, quando foi cancelada, ganhando uma sexta temporada pela Yahoo Screen, a qual durou de 17 de março até 02 de junho. Maiores informações sobre a série podem ser vistas aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/Community_(TV_series)

[3] Estou usando o termo por muitos seres também contrários ao segmento cristão, que costuma ser enquadrado à direita.

[4] Entre outros tanto, tem esses aqui também: http://listasde10.blogspot.com.br/2009/12/10-filmes-sobre-incesto.html