terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A (não) existência de Birdman: Um final confuso ou uma proposta incompreendida?

     Diferentemente do que alguns chegaram a pensar, o filme do diretor mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu é um drama, contando a história do ator que, após interpretar o super-herói Birdman em três sequências nas telas do cinema, se tornou um ícone cultural, mas viu a carreira sucumbir devido a problemas familiares e com o ego.

     Inclusive, é importantíssimo saber que a personagem principal, Riggan Thomson/Birdman, é interpretada por Michael Keaton, o qual interpretou Bruce Wayne/Batman em "Batman: O Retorno" (1992), de Tim Burton. Isso já é o suficiente para entender o filme como uma grande crítica à indústria dos filmes de ação e de super-heróis, os quais costumam contar com orçamentos estratosféricos - e o orçamento de Birdman foi bem comportado.
     Além disso, também considero importante o conhecimento de que realmente existe um super-herói chamado Birdman, ou melhor, dois:

     1) o Bird-man (Henry Hawk), criado por Bob Powell e Wally Wood para a Marvel Comics em 1965;




     E, 2) o Birdman (Ray Randall), criado pela Hanna Barbera para seguir o rastro da "bat-mania", iniciada em 1966, sendo que apareceu em um desenho próprio no ano de 1967.




     Esse detalhe contribui para a visão do filme enquanto uma crítica à indústria megalo-orçamentária de filmes de ação e super-heróis. Entretanto, o filme não é somente sobre isso, mas também sobre outros cinco temas que convergem para um final visto por alguns como aberto, enquanto outros o viram como confuso. Eu, particularmente, penso que esse final tenha sido uma proposta que acabou ficando incompreendida e que apenas o diretor poderia dar esclarecimentos certos, mas que muito provavelmente tinha como objetivo discutir a realidade em seus diferentes níveis, níveis esses que se encontram em alguns dos outros cinco temas.
     Quanto aos cinco outros temas, eles são: 1) riscos, 2) a conectada vida contemporânea, 3) os limites da arte, 4) a loucura e 5) a realidade. Dito isso, comecemos do princípio.


Riscos

     No princípio do filme, a primeira coisa que chamou a minha atenção foi a forma pela qual as letras apareciam e desapareciam para, em uns dois momentos, destacarem três letras "A" dispostas na mesma linha e distantes entre si [1]. Acontece que a sigla AAA pode ter várias interpretações e duas delas se encaixam com a análise que aqui está sendo feita, no caso: 1) é a identificação das chamadas "pilhas-palito" (10,5 milímetros de diâmetro por 44,5 de largura), muito utilizadas nos controles remotos; 2) é uma nota dentro do sistema de rating (classificação de risco), que é utilizado pelas agências globais para classificar empresas, bancos e países, sendo que, no caso, AAA é a nota mais elevada, sendo sinônimo de "mais alta qualidade".
     Pois bem, o significado que importa nesse momento é o segundo, pois ele passa a (Presunçosa? Subliminar?)  mensagem que o filme é da mais alta qualidade, sendo que, por utilizar um símbolo pertencente à classificação de risco das agências globais, pode-se também pensar que haja a declaração de ser um risco fazer (atuar em, produzir, investir em) um filme como esse, pois, sendo um drama, e não um filme de ação e de super-heróis cheio de efeitos especiais e afins, haveria a possibilidade de ele ser um fracasso de bilheteria - e isso pode ser percebido quando um ressacado Riggan Thomson (imagina uma) conversa na rua com o Birdman.
     Porém, não é só por isso que o filme trata de riscos, não, ele também trata de riscos: 1) quando o ator considerado ruim sofre um acidente durante um ensaio e é dispensando antes da pré-estréia, sendo que não há certeza de que será encontrado alguém melhor a tempo; 2) quando é explicada a finalidade das pré-estréias, momento em que é permitido errar e testar para ver se a peça tem futuro ou não; 3) quando Riggan Thomson se vê obrigado a andar somente de cueca em plena rua (no caso, um risco à imagem e ao ego); 4) quando Riggan confronta a crítica cujo parecer pode avivar ou matar o futuro da peça; 5) quando Riggan tenta tirar a própria vida no palco (isso sendo visto pela crítica como um risco artístico que supostamente pretendia trazer realismo para o teatro).



A conectada vida contemporânea

     A crítica à contemporaneidade conectada apresenta-se bem nitidamente, tanto pelo fato de a personagem principal ser "invisível", não possuindo nenhum perfil no mundo virtual (pelo menos até tentar se matar), quanto pela crítica que Riggan Thomson faz aos amigos da filha, "interessados apenas em ser virais", com o detalhe que ele se torna um viral na rede ao andar só de cueca pela rua.

     Aliás, pode-se dizer que o filme também caminha no sentido da inserção do protagonista, refém do próprio passado, nesse novo mundo, tanto que, após a tentativa fracassada de suicídio, Riggan renasce com um novo nariz, o amor da filha, o sucesso nos palcos, a comoção pública pelo acontecido e... Passando a existir no mundo virtual, uma vez que sua filha cria um perfil no Twitter para ele. Assim, Riggan morre para o mundo antigo, desconectado, e renasce no mundo conectado.



Os limites da arte

    A discussão acerca dos limites da arte está presente no filme desde o começo, quando Mike Shiner age de modo a provocar emoções verdadeiras (ou reações que pareçam o mais real possível) em Riggan, durante o primeiro encontro e ensaio deles.

    No decorrer do filme, essa discussão é retomada algumas vezes, principalmente quando há o questionamento acerca da importância que a peça possui para Riggan, se ela realmente o é pela arte ou porque ele quer se sentir importante em um mundo que o desconhece e que não lhe dá a mínima.
     Por fim, o limite da arte é questionado quando a tentativa pública de suicídio levada a cabo por Riggan oficialmente (porque o que importa, em primeira instância, é a palavra da crítica que ele confronta no bar) é vista não como um suicídio, mas sim como um ato artístico extremo supostamente impregnado com uma tentativa de revitalização da arte teatral.


A loucura

     É aqui que entra o primeiro significado da sigla AAA, tanto porque Riggan nitidamente está uma pilha de nervos, quanto porque as tais pilhas palito são muito utilizadas em controles remotos. Calma, já vou explicar.

     Antes de qualquer outra coisa, a expressão idiomática anglófona equivalente à nossa "uma pilha de nervos" seria "a nervous wreck", que não tem nada a ver com pilhas. Por outro lado, existe uma expressão com a palavra inglesa para pilha, battery, que tem a ver com o comportamento de Riggan, no caso, for assault and battery, a qual significa algo como "por agressão". E o ator decadente encontra-se agressivo, em várias situações pondo-se a destruir coisas do seu camarim, destruição essa que Riggan atribui aos seus poderes como Birdman.
     Nas primeiras cenas em que isso acontece, a impressão que fica é que Riggan possui poderes telecinéticos (e aqui se encontra a relação ao controle remoto, o controle à distância) ou imagina tê-los, mas então ele é mostrado destruindo as coisas com as próprias mãos enquanto fala sozinho, deixando claro que a personagem está enlouquecida, mais especificamente sofrendo de esquizofrenia, pois ele nitidamente possui uma perda com a realidade, tendo delírios (acreditando que arremessa as coisas por meio de telecinese, além de ver o Birdman) e ouvindo a voz de Birdman, fora que isso o leva à tentativa de suicídio.
     Por fim, a loucura não está presente apenas na personagem principal, pois o comportamento de Mike Shiner também pode ser entendido como, no mínimo, próximo disso, pois ele somente consegue viver, de fato, nos palcos, como quando tem uma ereção em cena, após meses sem ter uma.



A realidade

     O filme aborta a realidade em seus diferentes níveis: o mental (já debatido, uma vez que abarca o universo das doenças mentais), o do ambiente teatral/cinematográfico (a arte e seu limite), o do ambiente virtual (para o qual Riggan é invisível durante a maior parte do filme) e o universal. Como os três primeiros níveis já foram vistos - de certo modo - nos tópicos anteriores, neste discorrerei sobre o quarto nível, o universal.

     Conforme dito no tópico anterior, Riggan sofre mentalmente com uma perda da realidade e esse é um ponto para entender esse último tópico. O outro ponto é a percepção de que o cenário do filme é muito carregado de cor azul, em seus vários tons, o que acaba traçando uma intertextualidade com certo filme que aborda muito essa questão da "realidade", isto é, da pergunta acerca do que é ou não é real. O filme, ou melhor, a trilogia cinematográfica é Matrix, Matrix Reload e Matrix Revolutions.
    O motivo para a intertextualidade com a Trilogia Matrix é que toda a Matrix possui tons de verde, enquanto o mundo real apresenta a cor azul como predominante. Somando-se a isso o fato de que o filme todo, salvo por um momento no início e outro no final, parecer ter sido feito em apenas uma tomada, pode-se considerar que esse "meio" se passa no mundo real, enquanto os outros dois não o seriam. Isso, claro, se considerarmos que o critério adotado tenha sido o mesmo da Trilogia Matrix (azul = mundo real, verde = mundo virtual).
     Assim, passa-se a ter duas possibilidades: 1) todo o período de tomada única se passa no mundo real e, após a tentativa de suicídio, Riggan desperta para uma nova realidade, para um mundo ilusório (azul mundo real); 2) todo o período de tomada única se passa numa realidade simulada e, após o tiro contra si próprio, Riggan desperta para o mundo real (azul mundo virtual).
     Na primeira possibilidade, o sentido disso pode ser visto como sendo mais simbólico, pois representaria a morte do personagem para o antigo mundo no qual ele insistia em viver e o seu nascimento para o mundo virtual, para a contemporaneidade conectada, tanto que ele renasce para a mídia e nasce para o Twitter.
     Na segunda possibilidade, há vertentes: a) a realidade simulada se daria na mente desacordada de Riggan, que desperta e se descobre dotado de poderes; b) a realidade simulada seria algo como a Matrix, da qual Riggan desperta após tentar o suicídio e, assim como Neo ressuscitou no primeiro filme e descobriu ser capaz de alterar a realidade ao seu redor, também descobre ser capaz de alterar a realidade, tanto que, assim como Neo alça voo no fim do primeiro filme, fica subtendido (pelo expressão facial de sua filha) que Riggan faz o mesmo.
     No caso, no que tange à segunda possibilidade, não haveria uma ruptura verdadeira com a realidade ilusória, pois o personagem permanece nela, só que capaz de contorná-la, ou seja, ele não passa de uma realidade virtual para o mundo real, a sua "libertação" (os pássaros voando não são o símbolo da liberdade?) sendo parcial (se considerarmos que haja um mundo real além daquele mundo no qual Riggan alça voo).
     Outra coisa que me levou a pensar isso, além da cor predominante no cenário, foram duas frases: "Procure não pensar muito", dita por Mike quando Riggan convoca-o a encontrá-lo na frente do teatro (depois da primeira pré-estréia); e, "Se eu não existo, eu não estou aqui", dita por Riggan pouco antes de atirar contra si mesmo. Ora, a segunda me lembrou certa célebre frase, "Penso, logo existo", e a primeira frase acaba servindo de fundamento/conselho para a segunda. Juntando-as, tem-se algo como "Se eu não penso, não existo e, se não existo, eu não estou aqui".
     Essa é a chave para o rompimento com a realidade que, na verdade, é ilusória, e o despertar para o mundo real, pois apenas podemos ter certeza de nossa própria existência, uma vez que pensamos e não temos acesso ao pensamento dos outros [2]. Portanto, todo aquele mundo com predominância de azul, e todas aquelas personagens, seriam uma projeção da mente de Riggan, que, ao deixar de pensar muito e anular-se, o destrói, permitindo, assim, o seu acesso/retorno ao mundo real (no qual ele teria poderes, de fato).



Concluindo

     "Uma coisa é uma coisa, não aquilo que dizem daquela coisa". Essa frase encontra-se num bilhete afixado no espelho do camarim de Riggan e é vista com ênfase no começo do filme. O que se pode extrair dela, basicamente, é que Riggan atirou em si mesmo e o fato de que uns dizem que foi tentativa de suicídio, enquanto outros dizem que foi uma ato artístico extremo não muda o fato de que Riggan atirou em si mesmo.

     Entretanto, o tiro atingiu o nariz de Riggan e representa uma ruptura no filme, bem como uma passagem de uma realidade para outra, seja isso simbólico ou não, conforme visto no tópico anterior. Isso porque ele atingiu o nariz de Riggan, que acaba alterado cirurgicamente, isso significando que Birdman, o id de Riggan, foi diminuído, tanto que ele não mais aparece imponente e tagarela, mas sim defecando no vaso sanitário - problema de ego (aparentemente) resolvido. E sendo o nariz um símbolo fálico, pode-se mesmo dizer que Birdman representa o deus interior de Riggan, com o qual ele se harmoniza [3].
     Por fim, a anúncio da peça O Fantasma da Ópera mostra-se presente e marcante em meio ao cenário externo ao teatro. E o que isso tem a ver? Tudo, pois Birdman pode também ser visto como alusão ao "misterioso fantasma da Ópera" que causa vários acidentes (a lâmpada que cai na cabeça do ator, logo no começo, as coisas destruídas no camarim de Riggan, o tiro), fora que dá pra ver a relação do fantasma que atormenta a ópera e é o anjo enviado pelo pai de Christine para guiá-la com o Birdman, que atormenta Riggan e, em seu aparente voo, fascina Sam (a filha de Riggan) após ele pular pela janela. Na verdade, esse comparativo entre Birdman mereceria um texto próprio, de modo que encerro aqui dizendo que Erik, o fantasma da Ópera, é obrigado a usar uma máscara por ter o rosto deformado, enquanto Riggan, após a cirurgia, encontra-se com a região do nariz e ao redor dos olhos muito inchada, com uma aparência horrível - o que poderia servir de pretexto perfeito para Riggan utilizar um máscara como a do Birdman.





NOTAS


[1] O que quero dizer é que não estavam como em "AAA", havendo algum espaço entre elas.

[2] Na verdade, temos por meio da literatura e da arte em geral, que atuam como práticas humanizadoras, capazes de conectar, independentemente do tempo e do espaço, um ser humano a outro(s).

[3] Isso tudo também pode ser visto como um complexo do ator com o seu nariz que não é esteticamente aceito, inconscientemente arranjando um pretexto para alterá-lo e, então, cair nas graças da mídia "arianista".

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